25/04/08

25 DE ABRIL DE 1974

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Lamego. Quinta-feira. Um dia claro de céu muito azul. Logo pela manhã o meu Pai foi-me buscar. De mãos dada com ele, caminhámos até ao Colégio para vermos o meu irmão. Antes, uma conversa no Gabinete do Director, [as notas dele nem sempre eram muito famosas] onde ouço este, com ar apreensivo, dizer ao meu Pai que tinha acontecido qualquer coisa em Lisboa. O meu Pai que saíra muito cedo de casa, ainda não tinha ouvido, nem lido, notícias naquele dia.
Depois da visita ao meu irmão, fui almoçar para depois ir para as aulas. Já quase a chegar à Escola Preparatória, que ficava paredes meias com o Liceu Nacional Latino Coelho, deparo-me com uma multidão que grita: "assassino" "assassino", enquanto as letras de ferro que formavam as três palavras [António de Oliveira Salazar] que davam nome à Alameda mesmo em frente ao Liceu, eram arrancadas, com raiva e violência, à pedra onde estavam incrustadas. Estranhei muito ver o Miguel Ângelo, que devia ter já uns 17 anos, e que eu conhecia por ser primo de uma colega minha, a gritar no meio daquela gente toda. Estranhei porque o achava sempre muito calado, muito quieto. Aí percebo que, de facto, alguma coisa de importante se estava a passar e só podia ter a ver com a conversa que o Director do Colégio tivera com o meu Pai.
Lembro-me, também, duma colega, um ano mais velha que eu, a Maria João, filha do meu professor de História, ficar boquiaberta a olhar para tudo aquilo e se virar para mim para perguntar o que teria feito o homem para lhe chamarem assassino. Não lhe soube responder.
Não me lembro se chegámos à Escola se não. Sei que alguém nos mandou para casa, pois não haveria aulas, mas que fossemos por trás do Liceu, não pelas ruas do costume. Quando comecei a ver tanques e tropas por todo o lado o meu coração começou a ficar apertado. Que raio se passava?
Como desejei que o meu Pai ainda ali estivesse comigo. Mas não. Já tinha ido embora. [Naquele tempo, para se estudar além da Escola Primária era preciso sair da aldeia. Eu estava hospedada num Lar para estudantes].
No Lar ninguém nos explicou nada. Só sei que nos concentrámos frente à televisão a ver o que se ía passando nas ruas em Lisboa. Os tanques, as tropas. Uma confusão. Comecei a chorar. Chorava pela minha irmã que estava em Lisboa, já na faculdade. Chorava porque tinha medo do que lhe pudesse acontecer. Mal eu sabia da sua alegria a comemorar, bem no centro dos acontecimentos.

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Não passou assim tanto tempo para que eu, por influencia da minha irmã, andasse nas ruas da católica Lamego, com um emblema do MES na lapela, o que me fez ser uma espécie de mascote do pequeno núcleo daquele pequeno partido em Lamego.

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Também não demorou assim tanto tempo para que fizesse parte duma lista candidata à Associação de estudantes. Não fosse eu tão boa aluna e teria, provavelmente, sido expulsa do Lar onde estava, pois integrava uma lista onde havia dois colegas da UEC. Dizia a Directora do Lar que parecia impossível uma carinha tão bonita andar no meio dos comunistas, referindo-se ao cartaz da Lista B, que alguém fez o favor de lhe dar a conhecer.
Fui, então, convocada, com todas as colegas, para uma reunião de emergência para tratar desse assunto. Aquele Lar não era lugar para meninas comunistas. Eu nem era comunista. Nem outra coisa. Era eu. Defendi-me. Não me calei. Argumentei com o que pude. Mas, importante foi algo que nunca esquecerei, a solidariedade das minhas colegas que me defenderam com unhas e dentes, sem medo. Enfrentámos a Directora.
Passados uns dias fomos mais longe e desafiámo-la. À sexta-feira havia missa, à qual obviamente tinhamos que ir, quisessemos ou não. Naquela sexta-feira estavamos cheias de vontade de ir, porque tínhamos combinado uma acção provocadora. Fomos pejadas de autocolantes da lista B. À saída fomos todas juntas dar o beijinho da praxe à Directora, para que ela os visse bem e percebesse que não tínhamos desistido. Não sabíamos o que nos esperava. Surpresa das surpresas. Milagre. Nem uma palavra. Fez de conta que não viu nada, o que era impossível. Talvez porque as da linha da frente desta revolta fossem todas muito boas alunas, bem educadas e algumas de muito boas famílias. Não tínhamos cadastro algum a nosso desfavor. Nem sequer os nossos pais souberam de nada. Tínhamos ganho.
Mas, o que me soube melhor foi a cara de parvas das colegas mais velhas, de 6º e 7º anos, a olhar para a nossa ousadia, nós que tínhamos entre 13 e 15 anos, porque foi uma daquelas que fez o favor de informar a senhora directora que e minha pessoa fazia parte da lista do Humberto Costa, filho de um notável comunista de Lamego que era amigo de Álvaro Cunhal.
Depois, este acontecimento interno do Lar, soube-se fora. Tive que usar de toda a minha capacidade de convencimento para tirar da cabeça dos rapazes a ideia de organizar uma espécie de assalto ao Lar das Meninas. "Vamos lá uma cinquenta malta que ela [Directora] vai ver" frase que ficou na história deste acontecimento, pequenino, mas importante.
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Lembro, ainda, a fotografia da capa da Revista Observador onde se via uma enorme multidão em volta do carro que transportava António de Spínola. Lá mesmo no meio dos acontecimentos, a minha irmã, bem visível, coisa que não agradou muito ao meu Pai, sabia-se lá o que podia acontecer quando as multidões se descontrolam. Era essa a sua preocupação.

Hoje, passei parte da tarde à procura do livro sobre o 25 de Abril de 74 que tem essa e outras fotografias onde aparece a minha irmã, quase em cima do carro do Spínola, a dar vivas à revolução. Quando o encontrar, aqui postarei a fotografia.
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Apesar de não ter tido consciência do que se passava naquela quinta-feira de luz e céu azul. Eu de mão dada com o meu Pai. Hoje, mesmo sem o calor da mão do meu Pai na minha, sinto-me tão dona deste dia como aqueles que vibraram com ele por saberem exactamente o seu significado. Somos donos daquilo que adoptamos enquanto modo de ser, estar e fazer...com os outros.


Imagem - Cravo digitalizado, comprado na manhã do dia 25 de Abril de 2007, com inversão de cor.

9 comentários:

Pulsante disse...

...as coisas que se descobrem sobre ti no blog.

mdsol disse...

Oh minha querida:
O que eu me comovo quando tu abres o livro!!!
beijos muitos
(olha que tu tinhas só 11 anos...)

mdsol disse...

Ah! E essa do carro do Spínola o que se passou realmente é que, quando o carro ia a passar devagarinho (por volta das 17h) já dentro da praça, quase junto ao quartel do Carmo, eu fui empurrada... Num gesto natural apoiei a mão no carro que levava o vidro da janela de trás um pouco aberto .... quase fiz saltar o monóculo ao Spínola rsrsr (eu não era muiiiiito informada, mas... não era inocente em relação ao que ele significava... entendia que naquela hora era o possível) Mas valeu o quase "encontrão". Pior foi passado um bocado... assustei-me com qualquer coisa e não me fiz rogada...peguei nas socas que trazia e corri descalça rua abaixo que só parei perto dos Armazéns do Chiado...
:))

Fernando Vasconcelos disse...

É destas histórias que se faz o 25 de Abril.

Unknown disse...

Que história fantástica!...

Pois é... Parece que é destas nossas histórias, todas juntas, que se faz o 25 de Abril, agora...

... porque vivemos, intensamente, esse dia e os que se seguiram.

... intensamente.
... intensas as nossas mentes!..., mesmo com 11 anos ou mais um pouco...

[Beijo com sabor a essa liberdade]

Manuel Veiga disse...

prazer em saber-(te). grande!

gostei muito.

Juani disse...

es bueno que alguien de cuando en cuando quite el polvo a la historia y nos recuerde que hubo un pasado. Enorabuena por tu entrada

12ºF disse...

Olá. Estava eu a pesquisar sobre o 25 de Abril na minha cidade de Lamego, pois preciso dessa informação para um trabalho da escola, e encontrei o seu blog e gostei bastante. Mas gostaria de saber se poderia fornecer mais informação, ou melhor dar-nos o seu testemunho. por favor responda para este e-mail: escolalatinocoelho@gmail.com

Mónica disse...

q giro, tinhamos quase a mm idade e antipodas de vida eheheh e então és irmã da mdsol e n filha como pensei ;P por causa do post do aniversário recente.

gostei da escrita, limpida