02/04/08

O CASO MENTAL PORTUGUÊS

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Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa.
Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia, e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas. Por natureza, forma o povo um bloco, onde não há mentalmente indivíduos; e o pensamento é individual.
O que caracteriza a segunda camada que não é a burguesia, é a capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias; de criticar, porém com ideias de outrem. Na classe média mental, o indivíduo que mentalmente já existe, sabe já escolher – por ideias e não por instinto – entre duas ideias ou doutrinas que lhe apresentem; não sabe, porém, contrapor a ambas uma terceira, que seja própria. Quando, aqui e ali, neste ou naquele, fica uma opinião média entre duas doutrinas, isso não representa um cuidado crítico, mas uma hesitação mental.
O que caracteriza a terceira camada, o escol, como é de ver por contraste com as outras duas, a capacidade de criticar com ideias próprias. Importa, porém, notar que essas ideias próprias podem não ser fundamentais. O indivíduo do escol pode, por exemplo, aceitar uma doutrina alheia; aceita-a, porém, criticamente, e, quando a defende, defende-a com argumentos seus – os que o levaram a aceitá-la – e não, como fará o mental da classe média, com os argumentos originais dos criadores ou expositores dessas doutrinas.
Esta divisão em camadas sociais, embora coincida em parte com a divisão em camadas sociais – económicas ou outras – não se ajusta exactamente a essa. Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro pertence mentalmente ao povo. Bastantes operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de génio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol.
Quando, portanto, digo que a palavra “provincianismo” define, sem outra que a condicione, o estado mental presente do povo português, digo que essa palavra “provincianismo”, que mais adiante definirei, define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem. Como, porém, a primeira e a segunda camada mentais não podem por natureza ser superiores ao escol, basta que eu prove o provincianismo do nosso escol presente, para que fique provado o provincianismo mental da generalidade da nação.
(...)

Fernando Pessoa

[in Fama, nº 1, Lisboa, 30 de Novembro de 1932]

Textos de Intervenção Crítica, Edições Ática, 1993.

Imagem - Fotografia. TINTA AZUL.Maia. 19.01.08

8 comentários:

mdsol disse...

tás brava hoje?

(conhecia o texto, mas aplicado ao "teu Portugal" e ao meu momento...ganha novas leituras...)

:)

Tinta Azul disse...

Não especialmente. Mas também nao foi por acaso que hoje me lembrei deste texto. Há dias em que me falta a paciência. :)

Justine disse...

Ah grande Pessoa, actualíssimo e certeiro!

Unknown disse...

Pois, também eu, te ia perguntar porque te lembraste deste texto, precisamente deste e não outro, que até me fez doer mais qualquer coisa!...

Também a resposta está dada! Há dias assim...

Vinha dizer-te que esta quarta-feira, lá saíu, ainda em dia útil, mas que a minha paciência já não tem dias. Estou a perdê-la. Espero que o resultado seja qualquer coisa de "renovado" e não "adoentada", que é como me sinto.

[BEIJO]

mdsol disse...

que te "tiraram" a paciência percebi daqui de longe... mas atenção...ainda te faltam uns anitos para a perderes de vez como eu (quase) a perdi...

upa

Tinta Azul disse...

O post seguinte responde :)

GP disse...

A minha paciência é selectiva. Para algumas coisas, ela já acabou há tempos; para outras, ainda tenho muita...

Beijinho

Eduardo Graça disse...

Sempre aqui venho e não tinha dado por este post. Hoje voltei ao tema.