22/12/08

UM PRESÉPIO. UM CONTO DE RUI ZINK [3]

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É quase meia-noite. Dores está ali, como os outros, há mais de 36 horas. Teriam sido já recambiados, se nesta quadra os voos não estivessem sempre cheios, com passageiros legítimos, que legitimamente vão visitar os paraísos exóticos de onde vêm os clandestinos.
Roupas coladas aos corpos há demasiadas horas. Ar gasto, recinto estreito, demasiada concentração de pulmões.
Quanta gente tentando entrar nos EUA, em plena véspera de Natal. Infelizmente isso é tolerável. Assim, embora os guardas sejam americanos, a zona do aeroporto em que se encontram os ilegais não o é.
Joe é largo como duas portas, e tão escuro quanto grande e gordo. Aceitou fazer este turno, hoje, porque se ele não se voluntariasse, estaria ali outro funcionário da imigração. Um com família, doença de que não padece Joe. Que mulher em pleno uso do seu bom senso casaria com um hamburguer ambulante?
Dores é açoriana. Supostamente, ia ter com o "marido". Uma história mal contada. Na verdade apenas tinha uma vaga promessa de que, na América, não lhe faltaria o que fazer - como mulher a dias, a guardar crianças, ou mesmo como cozinheira.
Dores é bonita? Vá lá saber-se. Por isso a surpreendem os olhares esquivos que, de vez em quando, lhe lança aquele gigante negro. Dores sabe que ele é o inimigo, que por causa dele, e de outros como ele, vai ter a vida de novo a voltar para trás.
Mas que mais mal lhe pode ele fazer? Porque a olha então assim?
Joe não quer olhar para ela. É pago para ser inflexível, e sempre o foi. De certo modo até é para bem dos clandestinos. Os empregos mal chegam para os que já lá estão.
Ele cora? Não, um preto não cora. Joe sabe isso. Dores também o devia saber.
Mas sim, diz-se Dores, ele cora. Quase dá vontade de rir, não dá?
Falta pouco para a meia-noite, constata Joe. Falta pouco para a meia-noite, e logo desta noite. Pobre gente. Ele bem que gostaria de ajudar. Mas como? Sei lá, pensa Joe, ao menos uma vez na vida. Ao menos hoje.
Mas quem?
Talvez aquela mulher.
Não, diz-se Joe, não posso pensar isso. É pecado. Sobretudo nesta noite é pecado.
Joe sabe que por fora é feio. E pergunta-se: também o serei por dentro?
Dores inquieta-se: mas por que raio não pára ele de olhar?
Joe faz contas: se ela casasse com um cidadão americano já poderia entrar. E depois diz-se: olha-te ao espelho, estúpido.
Mas não precisava de ser um casamento a sério. Bastava ser no papel.
Basta ser no papel.
Basta ser no papel. Basta ser no papel!
Esta ideia, e o aproximar da hora, levam-no a decidir-se. Uma boa acção de Natal. É isso. Nada mais do que isso.
Uma boa acção.
De Natal.
- Ustéd quier cassar con mygô?
Primeiro, Dores acha que não percebe.
Depois, fica horrorizada. Que nojo de homem é este? E olha-o nos olhos, com o desafio de que só uma mulher muito muito pequena é capaz, perante um homem muito muito grande. A aproveitar-se de eu ser fraca, pobre, infeliz?
Ele apenas a olha. E ela aí muda um pouco. E pensa: homens. Dores conhece-os, ai se conhece. Mas depois pensa: ao menos nesta noite, virgem santíssima, poderei confiar em alguém? E logo num homem?
- Óquei - diz. Uma das poucas palavras que conhece em americano.
Joe estremece. E repete a si próprio que não lhe tocará. É apenas um acto de amor, sim, mas de amor cristão, casto e puro, desinteressado. Uma boa acção.
Uma boa acção. Nada mais do que isso.
Consta que, nessa mesma noite, fizeram um Menino.


Rui Zink [Dezembro 1997]

in Vésperas de Natal
Edições D. Quixote, 2002

Fotografia. Tinta Azul. Exposição de presépios feitos por crianças de JI e EB da Região Norte.19.12.08

1 comentário:

mdsol disse...

Ontem zinkei-te (para o blog do Zink)!
:))