Eleva-se entre a espuma, verde e cristalina e a alegria aviva-se em redonda ressonância. O seu olhar é um sonho porque é um sopro indivisível que reconhece e inventa a pluralidade delicada. Ao longe e ao perto o horizonte treme entre os seus cílios.
Ela encanta-se. Adere, coincide com o ser mesmo da coisa nomeada. O rosto da terra se renova. Ela aflui em círculos desagregando, construindo. Um ouvido desperta no ouvido, uma língua na língua. Sobre si enrola o anel nupcial do universo.
O gérmen amadurece no seu corpo nascente. Nas palavras que diz pulsa o desejo do mundo. Move-se aqui e agora entre contornos vivos. Ignora, esquece, sabe, vive ao nível do universo. Na sua simplicidade terrestre há um ardor soberano.
Num berço de granito Com a manta do céu A cobrir-lhe a nudez, A minha infância dorme. Nem bruxas nem fadas A velar-lhe o sono. No mais puro abandono Do passado. Respira docemente, Enquanto eu, inútil enviado Do presente, Sobre ela me debruço, E soluço.
Miguel Torga
Wim Mertens Time passing
Fotografia - Tinta Azul. Felgueiras- Resende.10.06.11 Música - YouTube
Os factos são o espelho as coisas mostram- -se atravessadas pelos rios do som A poesia quebra o vidro do dia como duma cratera a voz do fogo lança os jactos
Gastão Cruz in O Pianista
- B Smetana Piano Trio - Op 15 Violino - Josef Suk Violoncelo - M. Fukačová Piano - Jan Panenka
Com fúria e raiva acuso o demagogo E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada Que de longe muito longe um povo a trouxe E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início O homem soube de si pela palavra E nomeou a pedra a flor a água E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo Que se promove à sombra da palavra E da palavra faz poder e jogo E transforma as palavras em moeda Como se fez com o trigo e com a terra
Sophia de Mello Breyner Andresen in O Nome das Coisas
Onda de sol, verso de ouro, perífrase vã. Extasiar-me, antes, por esta fusão, mistura de brilhos. Ou, ainda mais íntima, a consciência extensa como o céu, o corpo de tudo, semelhança absoluta. Respirar na quebra da onda. Na água, uma braçada lenta até ao limite de mim.
Fiame Hasse Pais Brandão in Três Rostos - Ecos
- F Liszt Consolation nº2 Piano - Vladimir Horowitz
Fotografia - Tinta Azul. 31.12.10 Música - YouTube
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua mais que perfeita imprecisão, os dias que contam quando não se espera, o atraso na preocupação dos teus olhos, e as nuvens que caíram mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações a abrir-se para dentro e para fora dos sentidos que nada têm a ver com círculos, quadrados, rectângulos, nas linhas rectas e paralelas que se cruzam com as linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos, a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram e dos encontros que sempre se soube que se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo o rosto sonhado numa hesitação de madrugada, sob a luz indecisa que apenas mostra as paredes nuas, de manchas húmidas no gesso da memória;
a vida feita dos seus corpos obscuros e das suas palavras próximas.
Nuno Júdice in Teoria Geral do Sentimento
- J Brahms Sonata nº1 para Violoncelo e Piano [3ºandamento] Violoncelo - Jacqueline du Pré Piano - Daniel Barenboim
Não sei quantos seremos, mas que importa?! um só que fosse e já valia a pena. Aqui, no mundo, alguém que se condena A não ser conivente Na farsa do presente Posta em cena! Não podemos mudar a hora da chegada, Nem talvez a mais certa, A da partida. Mas podemos fazer a descoberta Do que presta E não presta Nesta vida. E o que não presta é isto, esta mentira Quotidiana. Esta comédia desumana E triste, Que cobre de soturna maldição A própria indignação Que lhe resiste.
Miguel Torga in Câmara Ardente - 1962
- F Liszt Estudo Transcendental nº5 Fogos Fátuos Piano - Boris Berezovsky
Sei que seria possível construir o mundo justo As cidades poderiam ser claras e lavadas Pelo canto dos espaços e das fontes O céu o mar e a terra estão prontos A saciar a nossa fome do terrestre A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia Cada dia a cada um a liberdade e o reino — Na concha na flor no homem e no fruto Se nada adoecer a própria forma é justa E no todo se integra como palavra em verso Sei que seria possível construir a forma justa De uma cidade humana que fosse Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Sophia de Mello Breyner Andresen in O Nome das Coisas
- F Mendelssohn Canções sem palavras Op 30 - nº 1 Piano - D Barenboim
Fotografia - Tinta Azul. 05.02.11 Música - YouTube